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Ame o seu corpo

Gorda! Antes um xingamento, hoje afirmação. As mulheres gordas, juntas, estão deixando de lado o julgamento que a sociedade faz do que é um corpo belo e saudável para dizer: sou gorda, sim, e sou maravilhosa. Eu existo.

Textos Paula Janay Fotos e Videos Joá Souza

Design Laruama Brandão Ilustração Túlio Carapia

Gordivas

Conheça a história de mulheres que transformaram a sua relação com o corpo.

Para ser feliz, esqueça os padrões e encare o espelho com amor. Moça, você é linda, não importa o que os outros digam. Esta é a mensagem que cada vez mais mulheres estão gritando em coro para te dizer que, sim, seu corpo é lindo e pertence apenas a você.

A palavra de ordem é empoderar e mostrar que são as diferenças de formatos e de cores que fazem as pessoas belas. Os padrões de beleza impostos, ao contrário, causam sofrimento, uma busca por aceitação que pode ser perigosa e gerar distúrbios emocionais e alimentares.

“O sistema está o tempo inteiro nos fazendo acreditar que nós somos feias, que nosso corpo não é massa, e nós, as que se sentem firmes e empoderadas, precisamos dizer isso para as outras mulheres”, diz a fotógrafa Helen Mozão, criadora dos ensaios “Gorda Preta” e “Seramor”. Suas modelos são mulheres comuns da periferia de Salvador, de todos os tamanhos e tons de pele, que não escondem as suas formas e celebram os seus corpos.

As histórias de mulheres como Mozão estão espalhadas pelas redes e são muitas. Uma professora que se descobriu e passou a ser feliz como gorda depois de afirmar também o seu cabelo crespo. Uma técnica de enfermagem muito magra, que só ficou satisfeita com seu corpo quando engordou. Uma ex-bancária que decidiu que o seu lugar não era na obscuridade, mas na passarela, em frente às câmeras, como modelo plus size.

Elas não se conformam mais com o lugar que lhes é designado. Para elas, as gordurinhas não precisam mais ser disfarçadas com truques de moda ou ficar escondidas em um maiô. E gorda pode usar biquíni? Claro, se ela quiser.

Ao convidar mulheres gordas para a praia, em fevereiro, no evento “Gordivas invadem a praia”, a grafiteira e feminista vegana Sista Kátia pretendia discutir a exibição do corpo gordo e celebrar esse empoderamento. “As pessoas se sentem no direito de julgar esses outros corpos que não se encaixam nesses padrões. Tomar um banho de mar pode ser um ato revolucionário, se você tiver disposta a estar com outras mulheres que estão nesse processo de empoderamento e autoestima”, conta.

Esse processo de afirmação não seria possível sem a internet, segundo a designer de moda e professora de gênero e diversidade da Ufba, Carol Barreto. A web e as plataformas de geração de conteúdo permitem que essas mulheres contem as suas próprias histórias e subvertam todo o discurso que os outros, a mídia, a moda e a geração fitness fazem sobre os seus corpos.

“A internet, as redes sociais e os espaços independentes de produção de si mesmo são locais onde a gente consegue perceber a maneira como outras mulheres ‘fora do padrão’ passam a se expressar e dizer: ‘sim, sou gorda’, ‘sou maravilhosa’ e ‘sim, eu existo’”.

A beleza de ser você

Corpo cheio de regras

Por que as mulheres são o principal foco quando falamos sobre as cobranças sobre o corpo? Para Carol Barreto, a resposta está no machismo e na percepção de que o corpo feminino é direcionado para o desejo sexual de um homem hétero.

“Há uma assimetria enorme para se definir o que é um homem bonito e uma mulher bonita. Quando a gente pensa na diferença de gênero pouco se vai comentar sobre a silhueta ou sobre o tamanho de calça que um homem veste, muito vai se comentar sobre a maneira como determinada mulher lida com o seu corpo. A direção é para uma postura e um discurso que é machista e heteronormativo, de que esse corpo precisa se atrelar a um ideal de desejo masculino”.

O culto ao corpo após a popularização das academias também gerou a busca pelo corpo perfeito nos homens, afirma a pesquisadora em gênero Iraildes Andrade. Apesar disso, ela defende que os rapazes ainda vivem privilégios que são negados às mulheres. “A mulher gorda que está acima do peso, que veste 46 e 50, sofre uma crítica que vai dizer que ela é relaxada, que ela é relapsa, que ela não está preocupada com o corpo”.

São essas cobranças que geram preconceitos com consequências cruéis para as mulheres. “A gordofobia é um mal que atinge desde a menina que tem cinco quilos a mais até a pessoa que está no processo de obesidade mórbida”, afirma a moderadora do grupo Gordinhas Lindas da Bahia, Carla Leal. O grupo, que saiu do Facebook e já reuniu mais de 160 pessoas em encontros presenciais, é espaço de acolhimento e batalha contra a gordofobia, preconceito contra homens e mulheres gordos.

“As pessoas não têm consciência do quanto a gordofobia é maléfica. Isso vai desde a entrevista de emprego, onde você é preterido em relação ao outro, a um assento no ônibus, quando as pessoas deixam de sentar do seu lado porque você ocupa mais espaço. Pessoas humilham, fazem comentários maldosos até quando você vai fazer um prato no restaurante. Até o homem que te trata de uma maneira diferenciada porque acha que uma mulher gorda é uma sub-categoria de mulher”, afirma Carla Leal. “As pessoas acham que podem determinar como o seu corpo vai ser como se magreza fosse um sinônimo de saúde, e não é”, complementa.

Corpo saudável é um corpo feliz

Ser gorda e se afirmar como gorda não é a mesma coisa que menosprezar a saúde. Ao contrário, as meninas que defendem o amor ao próprio corpo não deixam de lado a busca por uma alimentação saudável e a prática regular de exercícios.

“Não significa que uma pessoa que é gorda necessariamente é desleixada com sua saúde. Eu sou uma pessoa vegana. Eu tenho toda uma preocupação com saúde, eu pratico artes marciais, faço atividades físicas desde pequena. Não existe essa relação do corpo gordo com falta de cuidado ou por desleixo”.

Sista Kátia - Grafiteira, feminista e gorda.

Crédito: Helen Mozão

Pesquisas científicas, no entanto, apontam que a obesidade aumenta o risco do surgimento de doenças do coração, hipertensão, diabetes do tipo 2, entre outras. “Não podemos falar que o sobrepeso é saudável, mas podemos viver bem, adequar bem a nossa vida com sobrepeso", afirma a endocrinologista e conselheira do Cremeb, Diana Viegas. "Nos estados de sobrepeso, que nós chamamos de obesidade grau 1, ainda podemos encontrar pessoas que ainda estão saudáveis, que não têm complicações da obesidade e que conseguem manter os seus parâmetros normais ao custo de uma atividade física e uma vida mais saudável, que inclui exercícios e alimentação”.

O acompanhamento médico das taxas metabólicas é necessário para todas as pessoas, independentemente do peso. “Muitos magros são magros porque são geneticamente magros, podem até comer mais do que uma pessoa mais gorda. Quando você vai fazer uma análise médica dessa pessoa, você descobre que ela tem hipertensão, que tem triglicérides alterados. Não necessariamente os magros se cuidam. Você tem que analisar a pessoa como um todo não só pelo peso e pela estatura, mas fisicamente e pelos hábitos”

Com “exames lindos” - taxas metabólicas de glicose, colesterol, pressão arterial e outros -, a técnica de enfermagem Celeste Moura defende um conceito ampliado de saúde. “Hoje o conceito de saúde é você estar bem fisicamente, mentalmente e socialmente. É um conjunto de coisas que compõe a saúde. Eu sou gorda, porém meus níveis pressóricos e glicêmicos estão dentro do padrão. Acabei de fazer alguns exames e deram todos normais”.

Psicóloga, Amanda Nunes acompanha de perto a relação do corpo com a saúde emocional das mulheres, um interesse que surgiu de sua experiência pessoal de estar acima do peso, passar por uma cirurgia bariátrica, emagrecer, engordar novamente e encontrar uma imagem corporal satisfatória para si mesma. Ela alerta que a pressão para se enquadrar em um padrão de beleza afeta negativamente a saúde emocional das pessoas, principalmente das adolescentes.

A busca por um padrão de beleza esguio e que não considera a diversidade dos corpos pode gerar distúrbios na autoimagem das meninas, que se sentem gordas ou deslocadas, mesmo tendo o peso considerado dentro do normal. Casos mais graves podem levar à depressão, com efeitos que acompanham a pessoa ainda na idade adulta.

“A autocobrança exacerbada sobre si mesma começa a gerar sentimentos de culpa. Esses sentimentos vão crescendo e tomando conta não só de aspectos de imagem, mas de todos os aspectos e todas as situações da vida daquela pessoa. Eu começo a me culpar por não estar inserida em um padrão que eu mesma idealizei. Então começo a me sentir incapaz em tudo”, diz Amanda Nunes.

Dados

Apesar de não ser considerado ideal, o IMC ainda é utilizado pelo médicos para classificar o peso. O índice é claculado dividindo a massa do indivíduo pelo quadrado de sua altura

mitos e verdades

  • Magreza é sinônimo de corpo saudável e bem estar.

    mito

    A saúde deve ser analisada como um todo, não somente pela relação entre altura e peso.

    x
  • IMC é o melhor mecanismo para calcular o sobrepeso.

    mito

    O IMC é um parâmetro impreciso que não permite determinar se o peso está relacionado ao tecido gorduroso ou aos músculos.

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  • Uma pessoa pode ser gorda e comer e exercitar-se de forma semelhante a uma magra da mesma idade, sexo e altura.

    verdade

    Existem eficiências metabólicas diferentes entre as pessoas. Fatores hereditários interferem nos mecanismos de produção e acúmulo de gordura.

    Fonte: Federação Brasileira de Gastroenterologia
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  • Todo o tipo de obesidade leva ao mesmo risco para a saúde.

    mito

    A disposição da gordura é o principal fator de risco. Quando a pessoa tem acúmulo de gordura no tórax e na barriga, os riscos de desenvolvimento de diabetes, pressão alta, colesterol elevado e problemas cardíacos é muito maior.

    Fonte: Federação Brasileira de Gastroenterologia
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Tem roupa para mim

Entrar em uma loja de roupas é uma batalha para quem veste manequim acima de 46. É difícil encontrar uma peça que fique boa. A sensação é que não foram feitas para o seu tipo de corpo. A certeza disso vem quando as vendedoras das lojas dizem: “Não tem roupa para você”.

A modelo plus size Rebecca Pontual já passou muitas vezes por essa situação. Apaixonada por moda desde pequena, a ex-bancária que venceu o concurso A Mais Bela Gordinha da Bahia, em 2015, até hoje tem dificuldades de encontrar as roupas desejadas. “Eu quero usar o que é tendência no momento. Eu quero usar uma roupa lady-like, quero usar o short da Anitta. Não roupas que parecem que são feitas para a minha avó”.

Este cenário está mudando mundialmente. Grandes redes mundiais têm departamentos exclusivos para o tamanho plus size. E modelos com manequins acima de 44 são conhecidas e símbolos de beleza. Tess Holliday, Fluvia Lacerda e Candice Huffine são apenas alguns exemplos que servem de inspiração para muitas mulheres. Na capital baiana, lojas como Isa Rocha, Josefine e Speciale se especializaram no segmento.

Com o crescimento das lojas e dos eventos de beleza voltados a este público, a capital baiana gerou uma demanda por modelos plus size que não existia anteriormente. Estava previsto para o mês de novembro o primeiro curso de formação para compor o casting da primeira agência de modelo especializada no segmento na Bahia.

“Nossa meta é treinar e capacitar novos profissionais na área plus size para atender ao mercado interno baiano que, quando necessita, busca modelos em outros estados. Estamos carentes de mão de obra qualificada. Esses profissionais serão direcionados a agências de publicidade, ações promocionais e desfiles”, afirma a produtora do curso, Sheila Carvalho.

Galeria

Rebecca Pontual, modelo Plus Size.
Adriana Santos, organizadora de eventos e a primeira Miss Plus Size da Bahia.
Renata Lara, modelo plus size.
Lourani Santos, modelo plus size.
Carla Leal, ativista do movimento GG que lida com ação de pessoas gordas.
Celeste Moura, técnica em enfermagem.
Sâmala Azevedo, professora da rede pública.
Sista Kátia, grafiteira.

Moda democrática

Lojas especializadas ou departamentos destinados a manequins acima do 46 não são o ideal para transformar a moda em um espaço mais democrático para as mulheres gordas. O desejável, segundo a pesquisadora e designer de moda Carol Barreto, é que as medidas sejam ampliadas em todas as lojas para se adequar aos corpos que vão do 36 ao 56.

“Quando eu abro uma loja plus size eu não estou resolvendo um problema, estou dizendo para aquela garotinha que tem um lugarzinho para inclui-la. Você precisa entrar naquela loja específica para consumir um produto porque você tem um problema".

Estilistas independentes como Najara Black, da marca N Black, e Cyntia Paixão, da Cynd Biquínis, fogem da segmentação para criar roupas originais e criativas com manequins que vão muito além do 38. Com seis anos de trabalho na área, a estilista Cyntia Paixão trabalha com uma escala de medidas ampliada nos biquínis de sua loja. A marca também se especializou em peças sob medida.

“Estou aqui para realizar o desejo das minhas clientes, seja do PP ao Extra G. Cada mulher tem uma história diferente e isso mexe com a vida delas. E saber que com uma peça, por mais simples que seja um biquíni, não é só um biquíni. Eu estou realizando um sonho delas, elevando a autoestima”.

A própria Cyntia tem uma história pessoal com o peso. Ela se define como a única Deusa do Ébano do Ilê Aiyê gordinha. “A nossa visão é essa, é quebrar os paradigmas e os padrões ditados pela sociedade. Porque você pode ser rainha e pode ser princesa do jeito que você é. Eu nunca deixei que outras pessoas baixassem a minha autoestima. A identidade da mulher é ela quem faz. As mulheres que hoje têm atitude de se expor e usar um biquíni e um maiô nas redes sociais servem de inspiração. E meu intuito com a loja é esse, que o meu trabalho ajude a essas mulheres”.

Como nos discursos sobre o peso e afirmação do corpo, as mudanças na moda para as mulheres gordas estão acontecendo nos espaços independentes, com estilistas menores e fora do grande circuito comercial da moda. A transformação, mais uma vez, começa pelo dia a dia das mulheres comuns.

“As pessoas estão entendendo que seu manequim é 42, 44, 46 ou 50. As marcas que não atentarem para isso vão perder as possibilidades de venda”, afirma Sista Kátia. “E é o que já tem acontecido. Muitas mulheres gordas têm procurado marcas alternativas, têm produzido por suas próprias roupas, têm vendido suas próprias roupas para outras mulheres gordas. Muitas mulheres gordas têm feito bazar, brechó e customização. Elas estão renovando a indústria da moda”.

A gente não quer mais só vestir batinha. A gente não quer mais vestir abadá, mortalha. A gente quer vestir qualquer coisa, cropped, shortinho, legging. E se as marcas não produzirem, a gente vai produzir e vai tomar esse mercado também, tranquilamente, sem culpa nenhuma"

Sista Kátia - Grafiteira, feminista e gorda.

Créditos

Textos Paula Janay
Design Laruama Brandão
Ilustração Tulio Carapiá
Coord Visual Carol Casais
Fotos e Vídeos Joá Souza
Edição Multimídia Marcos Venâncio
Edição de Texto Hilcélia Falcão
Colaboração Thiago Santos

Agradecemos a Adriana Santos, Carla Leal, Celeste Moura, Kátia Araújo (Sista Kátia), Helen Mozão,
Lourani Maria, Sâmara Azevedo, Rebecca Pontual e Renata Lara por compartilharem as suas histórias.