“O tempo cura”, diz um antigo ditado popular. Para as pessoas que têm doenças degenerativas, no entanto, é justamente o oposto: o avançar do tempo é diretamente proporcional à progressão da doença. E como lidar com a realidade de um dia a dia que insiste em revelar a finitude do corpo e da mente? Como conviver com a ideia de que envelhecer precocemente, perder a visão, a memória, deixar de andar e de falar é apenas uma questão de tempo?
Tornar-se vítima do destino é um caminho possível e, talvez, o mais fácil. Não à toa, é o trilhado por muitos daqueles que possuem doenças incuráveis. Há, entretanto, quem se recuse a seguir o conceito de destino como uma trajetória de vida imposta ou algo que leva a um fim inevitável. Apesar de todas as dificuldades – e são muitas – alguns optaram por não se render. Decidiram continuar vivendo, no sentido mais pleno da palavra. A adolescente Sara Gonçalves tem síndrome do envelhecimento precoce e sonha em ser uma grande escritora. O vendedor Luis Henrique Morais é portador de esclerose lateral amiotrófica (ELA), mas não lamenta. Apenas agradece e acredita que será curado, pela ciência ou por Deus. A servidora pública Viviane Andrade nasceu com retinose pigmentar, uma doença que provoca a perda progressiva da visão, mas não alimenta o medo de ficar cega. Pessoas diferentes, histórias de vida diferentes, patologias diferentes. Em comum – além do fato de saberem que quanto mais o tempo passa, mais as doenças progridem – a decisão de serem coautores dos seus destinos. Sabem que não podem evitar a estrada que leva a um futuro previsível, mas optaram por segui-la munidos de fé, aceitação e, sobretudo, esperança.
Textos FABIANA MASCARENHAS
Fotos e Vídeos RAUL SPINASSÉ
Foi por meio da escrita e do perdão que Sara Gonçalves, 14, encontrou a cura para a tristeza que sentia por conta do bullying sofrido na escola durante a infância. A adolescente nasceu com uma síndrome degenerativa rara que provoca o envelhecimento precoce. A desordem genética acelera o processo, em alguns dos casos, em cerca de sete vezes em relação à taxa normal. Isso significa que uma criança de 10 anos pode ter a aparência de uma pessoa de 70.
A médica geneticista da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), Helena Pimentel, explica que há diversos tipos de síndrome do envelhecimento. Entre as mais conhecidas estão a de Cockayne (CS), Hutchinson-Gilford e Werner. “Algumas são mais agressivas do que outras, mas, de uma maneira geral, são muito raras”, afirma a especialista. A mãe de Sara, Márcia Santos Silva, 43, não sabe informar qual tipo de síndrome a garota possui, mas sabe o que é ter um filho com a doença. “Teve uma época em que eu só chorava”, desabafa. A mãe reagia diferentemente de Sara que, apesar das chacotas, deboches e do preconceito, não sabia como expressar a sua dor e revolta.
Atenta ao comportamento reservado da garota, uma das professoras da Escola Municipal Arthur de Sales – onde Sara estudava na época – sugeriu que ela escrevesse como se sentia. E a menina, que já amava escrever, colocou no papel os seus sentimentos. Palavreou a sua dor. Incentivada pelas docentes, foi de sala em sala e leu o que havia escrito para os colegas de cada uma das turmas da escola. Era o início de uma grande mudança no seu mundo externo e interno.
O colega que mais a atormentava com chacotas tornou-se seu melhor amigo. Ela, descobriu que escrever era o que mais a fazia feliz. A história resultou no livro O valor do perdão, o primeiro de sua ainda curta trajetória. Depois deste, fez uma readaptação da fábula do contador de histórias grego, Esopo, O Leão e o Camundongo, contada através das ilustrações de Jerry Pinkney. Em agosto do ano passado, lançou A Bruxinha Maricéia durante a “Mostra de experiências educacionais inclusivas: afetividade e práticas pedagógicas”, realizado na reitoria da Universidade Federal da Bahia (Ufba). O evento teve o objetivo de socializar experiências educacionais inclusivas.
Atualmente Sara está na 7ª série e estuda na Escola Municipal Teodoro Sampaio, mas frequenta a Sala de Recurso Multifuncional da Escola Municipal Arthur de Sales, sua antiga instituição. É lá que ela faz planos de lançar sua próxima obra, A Formiga Belinha.“Como as formigas, também adoro doces, por isso resolvi escrever sobre elas”, diz a garota, que ainda conserva o jeito infanto-juvenil, apesar da falta de dentes, das varizes, das dores ósseas e da fisionomia já um tanto envelhecida.
De acordo com a mãe da estudante, a escola teve um papel fundamental na formação e desenvolvimento da filha. “Nem sei como agradecer. Os professores foram fundamentais para que ela não se sentisse uma pessoa diferente das outras”, diz, visivelmente orgulhosa. “Sou como qualquer outra pessoa, só nasci com uma doença que elas não têm”, minimiza a menina.
Ao ser questionada sobre o que espera do futuro, ela não titubeia na resposta. “Espero formar uma família e me tornar uma escritora conhecida”, diz. Talvez ainda não saiba que a expectativa média de vida das pessoas com síndromes do envelhecimento é muito baixa, em alguns casos, não ultrapassa os 14 anos. Ou não, talvez simplesmente ignore o fato. A verdade é que Sara não parece preocupada com a velhice e a morte. É a vida que a move. É a vida que ainda a faz jovem.
Saiba mais sobre a Síndrome do Envelhecimento PrecoceProvoca envelhecimento acelerado e uma criança de 10 tem a aparência de 70 anos.
É uma desordem genética progressiva e rara que acelera o processo de envelhecimento. Há diversos tipos. As sindromes mais conhecidas são a de Cockayne (CS), Hutchinson-Gilford e Werner. A causa da doença estaria ligada a um gene que controla a estrutura do núcleo das células.
Entre os principais estão a queda do cabelo, perda de gordura subcutânea, artrose, clavícula anormal, face estreita, pele fina e enrugada, ausência de sobrancelha, unhas dos pés finas, voz anormal, lábios finos, dentição tardia e osteoporose.
Não existe exame que certifique o diagnóstico.
Não existem ainda tratamentos para a doença, mas para as patologias associadas. Como em outros casos, os cientistas acreditam que a terapia genética será a solução a longo prazo.
O tratamento é feito para amenizar os efeitos das diversas síndromes no portador. Clínicos gerais, oftalmologistas, dentistas e outros podem ajudar na melhoria da qualidade de vida.
O ex-vendedor Luis Henrique Morais, 37, anda com dificuldade. Suas mãos estão atrofiando e é bem provável que logo os membros superiores e inferiores paralisem totalmente. Há pouco menos de dois anos, ele descobriu que tem Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma doença rara que acomete anualmente cerca de duas pessoas a cada 100 mil.
Ele poderia lamentar e fazer uma pergunta comum em situações como essa: Por que eu? Não fez, apenas aceita a sua condição. “Nada é por acaso. Fui escolhido. Pode ser que seja a vontade de Deus com algum propósito”, diz, conformado. É justamente na fé, e no amor da mulher e do filho de 13 anos, que ele se apoia para continuar sua caminhada, cada dia mais cheia de limitações.
Luis foi obrigado a parar de trabalhar e tem que fazer sessões regulares de fisioterapia, além de se exercitar em casa. A cada três meses retorna ao Ambulatório de Doenças Neuromusculares da Escola Baiana de Medicina, em Brotas, para uma consulta. “Sair de casa é o mais complicado porque a cidade não oferece condições para quem tem deficiência. Não há acessibilidade na maioria dos espaços”, denuncia.
A mulher com quem convive há 16 anos, a operadora de caixa Valdineia Farias Morais, 34, se divide entre o trabalho, as necessidades do marido e o cuidado com o filho adolescente. “Não é fácil. Só Deus para nos dar força”, desabafa. Deus está nos cômodos da casa, nos corações e na fala cheia de fé e esperança dessa família de evangélicos.
“Tenho certeza que serei curado, seja por Deus ou pelos homens. Sei que logo poderei voltar a jogar bola com meu filho”, diz Luis, recusando-se a acreditar que terá um final comum à maioria dos pacientes: em um leito, sem movimentos, alimentando-se através de sonda e com a comunicação comprometida, muitas vezes, só conseguida com movimentos oculares.
Assim como Luis Henrique, Clélia da Silva Santos, 45, também tem ELA, mas já não imagina que ficará curada, apesar de ainda sonhar que está caminhando, dançando ou carregando a filha de cinco anos. “Não tenho mais essa ilusão de que vão descobrir a cura para a minha doença”, revela, sob o olhar triste e cansado da mãe. A ex-diarista já se encontra no estado avançado da doença e teme a próxima fase: o do comprometimento da deglutição e respiração. “Deixei de viver no dia em que me tiraram o direito de ir e vir. A única coisa que me resta é a voz. Depois disso, estarei definitivamente morta”, desabafa.
Apesar da declaração e das limitações, Clélia ainda tem motivos para se sentir feliz. “Quando me sinto muito frustrada, penso em Deus, na minha mãe guerreira, nos meus filhos – além da menina de 5 anos, ela tem um filho de 19 – e peço a alguém para me levar para ver a lua e o mar. Isso me faz bem”, diz, sorrindo.
A situação não é difícil apenas para os portadores de ELA. Para os médicos, lidar com pacientes com doenças incuráveis também é um desafio. “Quando não temos recursos ou não há tratamento, o que nos resta é acolhê-los. É esse o nosso papel”, diz a neurologista e coordenadora do Ambulatória de Doenças Neuromusculares da Escola Baiana de Medicina, Marcela Câmara Machado.
Número estimado de pacientes com ELA no Brasil
Ainda não se conhece a causa da doença. Causas multifatoriais podem estar envolvidas junto com componente genético, idade e algumas substâncias do meio ambiente
Cansaço fácil e câimbras geradas por esforços (fase 1). Fraqueza e contrações musculares espontâneas (fase 2). Deterioração dos músculos (fase 3). No estágio final, perda dos movimentos, respiração mantida artificialmente e alimentação através de sonda enteral
Baseia-se nos sinais e sintomas que evidenciam a perda progressiva de neurônios motores superiores e inferiores e é auxiliado por exames complementares.
Ainda não há cura conhecida. O tratamento começa com um medicamento chamado riluzol, que reduz a velocidade de progressão da doença e prolonga a vida do paciente.
Centro de Atendimento de ELA Av. Dom João VI, 275 – B.Brotas 1º andar Agendamento só pessoalmente, todas as sextas-feiras das 15h às 19h Médica responsável– Dra. Marcela Machado Costa Ambulatório de Doenças Neuromusculares do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) Rua Augusto Viana, snº, Canela Central de Atendimento: (71) 3283.8000
P erdas quase sempre são dramáticas. Diariamente alguém perde um amor, um parente, um bem material, uma oportunidade. Como a maioria das pessoas, a servidora pública Viviane Andrade, 41, já acumulou todas essas perdas ao longo da vida. Uma minoria como ela, no entanto, é obrigada a conviver com a triste realidade de perder um pouco da visão a cada dia.
Viviane tem uma doença degenerativa chamada retinose pigmentar, uma patologia hereditária que causa a degeneração da retina e provoca a perda progressiva da visão.
Os primeiros sintomas apareceram aos 17 anos. Como havia outras pessoas na família com a doença – um dos seus irmãos, inclusive –, sabia do que se tratava. Adiou a ida ao oftalmologista por seis anos. “Não via sentido em procurar um profissional apenas para saber o quanto de visão já havia perdido. Como é uma doença incurável, não havia o que fazer, apenas aceitar”, conta.
Mas se viu obrigada a procurar um oftalmologista quando começou a ter dificuldades para renovar a carteira de habilitação. Desde então, seu campo visual vem diminuindo gradativamente, não consegue ver as pessoas e objetos a distância e tem dificuldade de enxergar no escuro. Também já fez duas cirurgias para tratar catarata – uma patologia comum em pessoas que têm retinose pigmentar –, além de ter desenvolvido edema macular (concentração de líquido no olho).
Perdendo um pouquinho a cada dia, foi aprendendo a encontrar meios de lidar com o que era irremediável. Assim, adota hábitos e uma rotina que a ajuda a evitar transtornos ou constrangimentos. Passou a contar os degraus das escadas dos lugares que frequentava regularmente, evita ir a bares à meia-luz ou mal iluminados, só vai ao cinema acompanhada, anda sempre com uma lanterna na bolsa e seu celular tem letras grandes para facilitar a visualização dos números e mensagens.
Ela está perdendo a visão, mas não a esperança. Com a ajuda do líder espiritual João de Deus busca um meio de minimizar ou solucionar o problema. O médium recebe semanalmente cerca de cinco mil visitantes no centro que lidera em Abadiânia, cidade de 14 mil habitantes dividida ao meio pela BR-060, rodovia que liga Goiânia a Brasília.
Passou por duas cirurgias espirituais, dias 12 de março e 3 de julho, além de ter voltado ao local para duas revisões. “Algo de muito especial acontece ali dentro. Há entidades dotadas de conhecimento que trabalham para curar as pessoas, só não estão no mesmo plano que nós”, relata, fazendo questão de deixar claro que há uma orientação expressa para que os pacientes jamais abandonem o tratamento convencional.
Viviane diz ter notado a diferença na forma de enxergar 15 dias após a primeira cirurgia. Ao debruçar-se sobre o parapeito da varanda de casa, teve a impressão de que a prefeitura havia trocado as lâmpadas de todos os postes da rua em que mora, na Pituba. “Até então, olhava a rua à noite e não conseguia visualizar quase nada. Depois do procedimento, tive uma espécie de clarão. Consegui enxergar detalhes do prédio da frente, as esquadrias, os coqueiros do Colégio Militar, as placas dos carros. Fiquei muito feliz”, conta.
Apesar das mudanças evidentes, diz manter os pés no chão. “Acho que só tenho a ganhar buscando algo que possa me ajudar, mas não vivo a ilusão de que ficarei curada rapidamente ou que não exista possibilidade de a doença continuar progredindo”. Pergunto se ela tem medo de ficar cega: “Já tive, hoje não alimento mais esse medo. Não fico presa ao que já perdi ou ao que pode acontecer. Sou grata pelo que tenho e pelo que ganho diariamente”, afirma, mostrando que, mesmo em situações como a dela, lucidez e esperança podem andar juntas. Para alguns, “a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça muito sério”, diz um dos poemas mais conhecidos da escritora americana Elizabeth Bishop. Uma arte que poucos dominam, mas que Viviane parece ter aprendido muito bem.
Saiba mais sobre Retinose PigmentarEstima-se que a retinose pigmentar afete 1 em cada 4 mil pessoas.
Retinose pigmentar (RP) é formada por um grupo de doenças hereditárias, que causam a degeneração da retina, região do fundo do olho.
Inicialmente dificuldade de enxergar à noite (cegueira noturna), diminuição do campo de visão e, no final, diminuição na visão e alterações na percepção das cores e detalhes.
Casos de retinose pigmentar na família e dos sintomas clássicos, recomenda-se procurar um oftalmologista para uma avaliação mais aprofundada.
Ainda não existe tratamento convencional, mas há pesquisas com terapia genética e implante de um chip na retina.
Não há serviço específico na Bahia para a retinose pigmentar. O primeiro profissional procurado deve ser o oftalmologista.