A FÁBRICA AO LADO

Um passeio pelos vestígios do primeiro sítio industrial do Brasil

Vestido com uma capa de chuva amarela, Miguel. 64, surge entre os escombros. É o ponto incandescente na cena cinza. Vê aquela torre?”, ele pergunta. “Tem ventilação e vista boa. Durmo lá”. O morador de rua, de rosto radioso, destilando confiança em si mesmo, descortina seu crachá: “Sou o guardião aqui”. O espaço guardado é um monstro de ferro, aço e concreto, posicionado tal qual um farol que se abre para a praia de Paripe, no subúrbio de Salvador; um derradeiro exemplar do que foi o primeiro grande sítio industrial do país.

Miguel chegou à velha fábrica de cimento no início dos 1990, quando trabalhadores, motores e barulhos já haviam cessado. Décadas antes, entre o final do século 19 e meados do século 20, 127 fábricas à semelhança daquela se instalaram na Península de Itapagipe e no subúrbio ferroviário, regiões então idílicas da capital. Com a mesma rapidez moderna e movidas por ofertas fiscais mais atraentes, elas partiram para outras regiões do Brasil, legando um horizonte pontilhado por construções em decadência nesta área de Salvador.

Os vestígios do que outrora foi o oásis da atividade industrial nacional descansam no que hoje são bairros com comércios populares,puxadinhos e ruas apertadas; servem de campo para o futebol, para os furtos, para o grafite e para o abrigo dos sem-teto. Os esqueletos das antigas fábricas não têm o charme das ruínas gregas.O concreto não descasca, escurece. O vidro temperado não suja, enlameia. Mas há algo que alude à ruína romântica: a retomada impetuosa da natureza, da vegetação que vai envolvendo frestas e juntas de dilatação e ajardinando chaminés, tanques, engrenagens.

« Nossa produção enchia os vagões dos trens da Leste e iam em direção a todo o país »

Eduardo Barajas, ex-industriário

“Em cada uma dessas fábricas deve ter um grupo morando. Aqui, sou só”, diz Miguel, ostentoso de não sofrer concorrência de outros moradores pelo espaço. Com a pose de bandeirante que lhe convém, ele aponta para o litoral que alinha os bairros do subúrbio e da Cidade Baixa de Salvador: “Tem restos de fábricas de tecido, de fumo, cera, sapato, algodão, cal, fósforo. Fábrica de papelão, prego, móvel, vidro, borracha, bombom. Mal, a gente não passa”.

MARCO ZERO

Às margens da Avenida Suburbana, no bairro de Plataforma, encontra-se aquele que talvez seja o mais conhecido entre os restos industriais, marco zero da região, o conjunto arquitetônico da fábrica de tecidos São Braz – ao redor dela, surgiram ruas, vilas operárias e armazéns. Com seus tijolos alaranjados aparentes, essa é a ruína que lembra o momento em que o Brasil almejou com força a modernidade industrial – se tudo é feito pela indústria, tudo deveria ser feito para ela. “Nossa produção enchia os vagões dos trens da Leste (Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro), e as barcaças que saíam da Península Itapagipana, desembocavam na Baía de Todos-os-Santos e iam em direção a todo o país”, diz o senhor de fala rápida, Eduardo Barajas, 87, sentado na laje de seus obrado, com vista privilegia da para a antiga São Braz.

“Eu operava as caldeiras a vapor; ficava apaixonado pelos relógios gigantes dos corredores e pela alvura dos linhos. Eram os anos 1940 e eu era jovem. Você pode dar um desconto ao encanto”.

REFORMA

Embora arquitetos e urbanistas reivindiquem a conservação da arquitetura industrial, o caminho adotado segue em outra direção. Há dois anos,a prefeitura demoliu a estrutura da fábrica de chocolates Barreto de Araújo, na Ribeira, que deu lugar a uma praça.

No final deste ano, segundo a Superintendência de Obras Públicas, está previsto o início da construção deumcomplexo de lazer – piscina natural, quadras poliesportivas, parque infantil – que ocupará parte da estrutura da São Braz. O arquiteto Nivaldo Andrade, 38, um dos autores deste último projeto, vê, no entanto, um avanço nas relações nem sempre harmônicas entre a construção de espaços de lazer e a existência de marcos históricos.

“O plano é interferir minimamente na estrutura arquitetônica da fábrica. Há um senso ético e histórico que pede isso”, diz, referindo-se ao tombamento de São Braz pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, em 2002. “Não há como defender a manutenção das fábricas como elas estão hoje. Você olha e só consegue ver um terreno abandonado e inseguro”, diz Clara Gusmão, 55, que atua comolíder comunitária em Itapagipe.“Mas sabemos que estas são construções que têm um valor histórico.

Nossa luta é para melhorar a qualidade dos espaços sem perder a arquitetura”. Desde abril deste ano, Clara, mulher de voz forte e gestos maquinais, vem se reunindo com arquitetos e urbanistas voluntários para desenvolver propostas de melhoria das antigas indústrias e galpões.

O maior empecilho, ela diz, é a propriedade particulardos terrenos,quase sempre figurando como coadjuvantes no espóliode famílias baianas abastadas ou como depósitos de empresas que integram o Centro Industrial de Aratu (CIA), braço mais recenteda industrialização na Bahia.

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